Veríssimo Pinheiro de Melo, como foi batizado, nasceu em Natal, no dia 9 de junho de 1921. Filho de Graciano Melo e Emília Pinheiro de Melo, neto de dona Gertrudes Pinheiro e seu Manoel Joaquim da Costa Pinheiro – Seo Mané Ourives –, todos descendendo de ancestrais que habitavam o interior do Rio Grande do Norte: de Campo Grande, antigo Triunfo, hoje Augusto Severo; e alguns de Macaíba. Nasceu na rua Vigário Bartolomeu, antiga rua da Palha, 628, em casa que foi, de certa forma, imortalizada num poema de Esmeraldo Siqueira, o qual referindo-se à nossa casa dizia: “Graciano Melo, comerciante trabalhador e honesto, residindo à rua da Palha, calçou e vestiu gerações de velhacos”.
Do casamento de Emília e Graciano,
nasceram Nicênia, Pelúsio, Protásio, Maria Vitória e Veríssimo, o caçula que,
por ter nome comprido, teve-o carinhosamente reduzido para Vivi, certamente
pela dificuldade que tínhamos com o proparoxítono, hoje conhecido até no
exterior, onde se projetou o natalense, nas letras nacionais. Vivi. Chegando
por último ao convívio com os outros quatro irmãos, tinha certas regalias.
Contudo, isso era natural e compreendido por todos os irmãos que nunca deram
qualquer demonstração de inveja
Cresceu como todo menino de rua
daquela época, em cidade pequena. No seu universo inocente da rua da Palha,
Beco da Lama e adjacências, brincou de Jote 11 PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO
Caracanhote, coelho passa, capitão-de-campo, amarra-nego e biloca, ou gude –
como depois passou a se chamar. Tomou banho no Potengi (Centro Náutico), onde
aprendeu a nadar, chegando mesmo a atravessar o rio várias vezes, o que era
coisa de admirar, na época. Era o que se podia chamar um menino feliz.
Seu Melo, como era conhecido
nosso pai, embora não fosse rico, era o que chamava na época de “remediado” e
Vivi tinha o que queria, no universo das atividades de uma existência tranquila
de província. Educou-se inicialmente em Natal, nas primeiras letras, no
Atheneu, para o curso ginasial. Depois fez o curso pré-jurídico no Colégio
Universitário, no Rio de Janeiro, ingressando a seguir no 1º ano da Faculdade
de Direito da PUC.
No ano seguinte, transferiu-se
para a Faculdade de Direito do Recife, formando-se ali na turma de 1948. No Rio
de Janeiro, teve como professor, entre outros importantes, o Padre Leonel
Franca, nosso grande filósofo da Igreja, que acabaria tendo certa influência no
caráter e na formação da personalidade de Vivi. A temporada pernambucana reunia
os três filhos de Seu Melo, já adultos, na eterna luta do saber: Vivi e eu no
Curso de Direito e Pelúsio em Medicina.
Voltando para Natal, Veríssimo
começou a trabalhar em jornais, assumindo ao mesmo tempo as funções de juiz
municipal, mais adiante entrando em disponibilidade.
Desde o princípio gostou do
folclore, e fui testemunha do interesse e do seu sonho da fundação de um 12
PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO Clube Internacional da Ciência do Povo, com minha
ajuda, nos contatos em inglês e incentivo de Cascudo, que era parente e via
nele seu seguidor. Disse-me certa vez em sua casa: “Vivi vai ser meu
continuador”. E, de fato, faleceu uma autoridade no assunto com teorias
próprias sobre o folclore.
Mas voltemos a Vivi de bem antes,
jovem um tanto desligado de coisas materiais embora ousado. Quando viajei para
o Recife, nas eras de 1932, deixei no nosso quarto, na rua da Palha, uma
pequena estante com as coleções de Sherlock Holmes, Nick Carter, Buffalo Bill e
Raffles, todas elas quase completas, compradas na Livraria de Fortunato Aranha,
na Ribeira, na rua Dr. Barata.
Morei seis anos no Recife e,
tendo entrado na orquestra estudantil – Jazz Band Acadêmica de Pernambuco –,
raras vezes vinha a Natal, com visitas esporádicas, no Natal e nas festas
juninas, e quase me esqueci das minhas férias. Quando eu e Pelúsio voltamos
formados, lembrei das coleções. Fui até meu ex-quarto, mas nem a estante
existia mais. Perguntei a Vivi o destino das coleções e ele, com a cara mais
matreira do mundo, respondeu: “rapaz eu nem sei mais onde foi parar essa estante”.
E, até hoje, ainda não desvendei o mistério.
Era meio extrovertido, e isso era
conhecido e comentado pelos amigos e administradores. Certa vez, disse numa
mesa de bar: “Eu nunca tive nome. Quando menino era filho de seu Melo, na
juventude, irmão de Pelúsio e Protásio e depois de casado, pai de Silvio e 13
PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO Fernando”. No Atheneu, deixou nome de aluno gaiato,
embora respeitador
O professor Israel Nazareno
chamava-o de “o rapaz do Acre”, pois, por ser muito conversador nas primeiras
carteiras, o velho mestre de português mandava-o para as últimas filas para se
livrar de sua tagarelice, o que denominava de “território do Acre”
Certa vez, o porteiro, Emídio
Fagundes, amigo de papai, passava pela loja, já pertinho do fim do dia. Papai,
que algumas vezes ficava à porta vendo a banda passar, para Emídio e pergunta:
“Então, Emídio, como vão meus rapazes por lá?”. Emídio perfilou-se e respondeu.
Papai passou a escrever vários segundos sem dizer palavra.
Um belo dia, Vivi e Zé Alcântara
Barbosa, o conhecido Zé Bruaca, hoje advogado de renome no Rio de Janeiro, de
quem recebi telegrama, pela morte de Vivi, inventaram uma rifa e foram
conversar com a mamãe sobre um “jeitinho” que poderiam dar a Vivi ser premiado.
A coisa cheirou mal para dona
Emília e, em cima da bicha, receberam uma lição de moral sobre a honestidade. A
rifa terminou ali mesmo e os dois saíram de cabeça baixa
Tinha espírito inquieto e, muito
inteligente, dedicou-se à música, e junto com Galvãozinho, Geraldo Bezerra, seu
primo, e outros da terra formou um conjunto musical que ficou famoso e tomou
parte de vários shows no Teatro Carlos Gomes.
Trabalhou nos jornais da terra e
sofreu influência dos mais experimentados nas lides de ofício, como Wal- 14
PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO demar Araújo, Luiz Maranhão Filho, Rivaldo Pinheiro,
Leonardo Bezerra e outros quando passou a escrever poemas, crônicas e,
posteriormente, editando suplementos. Bem me lembro das boas referências sobre
seu estilo e bom gosto na escolha dos assuntos
Depois, entregou-se
definitivamente ao estudo da antropologia quando, por contatos pessoais e
correspondência, passou a conhecer os “monstros sagrados” do folclore, no
Brasil e no exterior.
Traduzi muitas cartas a figurões
na Europa e nos Estados Unidos e, em pouco tempo, Vivi se tornaria um expert no
campo da antropologia cultural. Ensinou durante vários anos na nossa
universidade e no Atheneu e suas aulas, segundo os seus alunos, despertavam
interesse, pois dominava muito bem os meandros da disciplina à qual dedicou a
vida.
Com José Nunes Cabral de Carvalho
e Padre Nivaldo Monte, contando com a entusiástica adesão do reitor, fundou o
Instituto de Antropologia, hoje Museu Câmara Cascudo. Foi um período de intensa
atividade, quando as viagens se sucediam em companhia do professor Antônio
Campos e Silva, agregado à entidade. Realizam importantes pesquisas em Natal e
no interior do estado, editando depois um boletim, sob a orientação de Vivi,
que se tornou líder e admirado no Brasil, sendo solicitadíssimo por várias
entidades daqui e do exterior.
Traço marcante no convívio de
Veríssimo era o seu temperamento folgazão, com chistes e piadas conhecidas
entre os colegas professores. Lembro-me bem que, quando vice-diretor do
Instituto, logo que Cabral 15 PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO adoecia, o que
lamentavelmente acontecia com certa frequência, por sua condição de diabético,
eu passava a responder pelos problemas da administração. Vivi chegava, olhava
pra mim e perguntava: “Há perigo de escapar?”. Muitos risos de quem ouvia isso,
porém Cabral não gostava. Não obstante, tinha um grupo grande de admiradores
que dizia: “Esse Vivi é impagável!”. Ouvi isso muitas vezes com relação às suas
boutades
Amigo de intelectuais em Natal,
no Brasil e no exterior, a todos parecia conquistar com sua inteligência e
humildade. Costumo dizer que em qualquer lugar do Brasil ele tinha uma espécie
de “agente especial” e, em pelo menos dois lugares onde estive – João Pessoa e
Belém –, fui por eles recebido principescamente, homenageado e, para surpresa
minha, na hora de pagar a conta, eles diziam: “irmão de Vivi não paga nada
nesta terra”
O poeta Ascenso Ferreira
costumava vir de Natal somente para visitar Vivi. A ele e a todos, Vivi recebia
de braços abertos, ajudando no que podia. Ascenso, certa vez, veio vender uns
discos de sua poesia e pediu ajuda a Vivi. Foi um sucesso. O disco foi comprado
por todos a quem o mano mandou. Então Ascenso lembra-se do bispo. “Vivi você
tem prestígio com o homem?”, Veríssimo responde: “Vá lá, fale no meu nome e
beije-lhe o anel”. Respondeu o poeta: “O homem é um pão-duro. Beijei-lhe o anel
duas vezes, e nem um disquinho”. Escreveu muito durante sua vida literária. Não
só artigos, poemas e crônicas, mas também livros, plaquetes e monografias.
Seu último artigo foi sobre o
escritor Américo de Oliveira Costa, seu colega da Academia e do Conselho de
Cultura.
Certa vez, num bar do Rio de
Janeiro, notou com espanto que estava a poucos metros do poeta Vinicius de
Moraes, que tinha muita vontade de conhecer. Externou uma velha admiração do
amante da MPB e da boemia, demonstrando seu desejo de apertar a mão do poetinha
e dos amigos da mesa, inclusive Hianto de Almeida, disseram: “Vá lá e se
apresente, e você vai ver o que acontece”. Vivi, já tendo tomado algumas
cervejas, definitivamente estava corajoso. Aproxima-se da mesa dos “Cavaleiros
da Lua” e se apresenta como admirador do poeta e compositor.
Vinicius de Moraes gentilmente se
levanta e apresenta-o aos amigos da mesa e, com aquela simplicidade e humildade
que só os grandes homens possuem, indaga do Veríssimo o que fazia etc., e, ao
saber da sua atividade no campo do folclore, admite já conhecer o seu nome e o
convida para um drink, o que foi aceito sem demora.
Grande admirador de nossa música
popular, bossa nova e jazz americano, isso nos unia muito, pois possuíamos os
mesmos gostos e preferências. Compôs alguns sambas, inclusive “Coisa boa” e
“Caju nasceu pra cachaça” foram gravados por Cauby Peixoto e Lucinha Lira,
cantados em muitas noites de luar, por esta Natal que ele tanto amava.
Incentivou dezenas de cantores e
conjuntos natalenses, e os que nos visitavam recebiam dele uma 17 PROTÁSIO
PINHEIRO DE MELO assistência contínua e entusiasmada. O Trio Irakitan foi um
deles. Levava seus membros às casas das melhores famílias natalenses,
cumulava-os de gentilezas e hoje, talvez, tivesse a pessoa a menor tendência
para a música, revelando talento, e ali estava o professor Veríssimo
incentivando a “prata da casa”. Oriano de Almeida é testemunha disso,
elogiando-o, com razão, pois é um mestre do piano e da música, em todos os seus
aspectos.
Era o maior fã do nosso
intérprete de Chopin. Sincero e honesto, avesso à política e aos conchavos,
viveu no meio de Dioclécio Duarte, Georgino Avelino, Teodorico Bezerra, Sílvio
Pedroza e, nunca se declarou, definitivamente a que facção política havia
aderido. Escrevia por dever da profissão e tinha entrada franca em todas as
rodas políticas do estado
Caindo nas graças de Onofre
Lopes, logo que este se fez reitor, convidou-o para seu assessor e espécie de lugar-tenente
das letras, tendo ficado na universidade até sua aposentadoria, na década de
1990.
Casou-se com Noemi Noronha de
Melo, cuja união gerou dois filhos, Fernando e Sílvio, e uma filha, que chamou
de Monique, a qual, ao nascer, mereceu poema elogioso do poeta Newton Navarro,
pela sua beleza. Nos seus últimos anos de vida, dedicou-se a contar graças aos
netos, que se divertiam bastante. Grande colecionador de discos de bossa nova e
jazz americano, possuía a maior coleção de discos do pianista Oscar Peterson,
que teve o prazer de ver e ouvir na cidade de Filadélfia, nos Estados Unidos,
quando 18 PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO visitou o grande país do Norte, convidado
pelo Departamento de Estado.
Nos Estados Unidos, ele foi
conhecer os museus de antropologia. Como seu inglês era fraco, deram-lhe um
intérprete oficial, um jovem de Minas Gerais, que se tornou seu grande amigo,
acompanhando-o numa grande viagem pelo Norte e pelo Sul do país.
Certa vez, chegaram cedo a um
aeroporto, onde iriam logo mais pegar um avião. Para matar o tempo, entraram
numa loja, e Vivi começou a perguntar o preço dos artigos expostos nas
prateleiras. How much ele sabia, e ia perguntando, e o galego respondendo. Lá
para as tantas, depois de ter perguntado preços de vários artigos, o americano,
já chateado, vira-se para o intérprete e exclama: “This son of a bitch does not
want to buy anything”. Ao ouvir isso, Vivi volta-se para o homem e grita: “Essa
eu sei, son of a bitch is you… is you”. Todos riem e os dois forasteiros foram
pegar seu avião.
Quase nunca falava da morte, mas,
quando fazia isso, sempre se referia aos 101 anos da vida de mamãe, Emília
Pinheiro de Melo, que dizia querer também chegar à essa idade. Era também meio
desligado quanto ao assunto doença e nunca ouvi de sua boca cavilação ou
exagero com relação à Dama de Negro. É certo que vivemos sob os desígnios de
Deus. Sei que não esperava a morte. Nas duas últimas visitas que fiz ao
hospital, trocamos apenas sorrisos e, no último dia antes da morte,
perguntei-lhe: “Então, viu meu artigo sobre Sílvio Pedroza?”. E ele, com certo
esforço, respondeu:
“Ótimo! Ótimo!”. Foram essas as
últimas palavras que troquei com meu irmão Veríssimo
Segundo seus familiares, ele não
reclamava nada e teve morte de justo. Foi o único homem do mundo que teve o
carro roubado num dia, e no outro, encontrou-o quase em frente à sua casa
Era membro de inúmeras entidades
no Brasil e no exterior, ligadas à especialidade que escolheu, a antropologia.
Verissimo de Melo faleceu em
Natal-RN, no dia 18 de GOSTO DE 1996
FONTE – LIVRO VIVI O HOMEM QUE
SABIA VIVER, DE PROTÁSIO PINHEIRO DE MELO